Perda da função pública e interpretação extensiva do artigo 92 do Código Penal

Recentemente nos deparamos com uma situação peculiar no escritório. Uma pessoa condenada em cinco ações penais — com trânsito em julgado — pela suposta prática de crimes licitatórios. Até aí, tudo bem (ou nem tanto).

Além da pena extremamente alta, resultado do somatório de cada uma delas, foi decretada a perda de seu cargo público, nos termos o artigo 92, inciso I, alínea “a”, do Código Penal.

A peculiaridade reside no fato de que, à época dos alegados fatos delitivos, precisamente no ano de 2009, o então acusado, lotado no setor de licitações, era funcionário comissionado, de baixo escalão, do Poder Executivo municipal.

Na data de prolação das respetivas sentenças, contudo, após ser aprovado em concurso público, tornou-se servidor efetivo, o que não impediu a perda do seu cargo público atual.

O magistrado sentenciante, em sua fundamentação, utilizou como argumento o seguinte precedente: Embagos de Divergência em REsp nº 1.701.967/RS, que tratou de analisar possível caso de improbidade administrativa. Na parte que importa a presente discussão, diz o referido julgado:

“(…) 4. Não parece adequado o paralelo entre a perda do cargo como efeito secundário da condenação penal e como efeito direto da condenação por improbidade administrativa. É que, reitera-se, a sanção de perda da função cominada pela Lei de Improbidade tem o propósito de expurgar da Administração o indivíduo cujo comportamento revela falta de sintonia com o interesse coletivo. 5. Nem se diga que tal pena teria caráter perene, pois o presente voto propõe que a perda da função pública abranja qualquer cargo ou função exercida no momento do trânsito em julgado da condenação. Incide uma limitação temporal da sanção. 6. Embargos de divergência não providos” (STJ – Embargos de Divergência em REsp Nº 1.701.967 – RS (2017/0218204-0), ministro Francisco Falcão. DJ de 9/9/2020).

Naquele julgamento, levado a cabo pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em brilhante voto (infelizmente, vencido), o ministro relator Gurgel de Faria, defendeu a impossibilidade de decretar a perda de cargo público diverso daquele ocupado — e utilizado! – para a prática de condutas ímprobas. Chama a atenção dois trechos do voto, quais sejam:

1º ponto – Violação ao princípio da proporcionalidade e da própria intenção legislativa materializada na Lei nº 8.429/92:

“(…) A subsistir o entendimento mais rigoroso, ficaria o agente público ímprobo, inclusive aqueles que já fizeram novos concursos públicos (como é o caso do ora recorrente), ou (aqueles) cujos cargos efetivos não têm qualquer relação com a função exercida no momento da prática do ato de improbidade administrativa, com uma espada sobre as suas cabeças até a hora do trânsito em julgado da sentença condenatória, de modo a alcançar todo e qualquer cargo público então ocupado (quando do trânsito em julgado), implicando, na verdade, o “banimento do servidor” do serviço público, mesmo que ele tenha refeito a sua vida em outra carreira. Essa indefinição quanto ao cargo a ser atingido, marcadamente violadora do princípio da proporcionalidade, certamente não foi a intenção do legislador ordinário ao aprovar a Lei n. 8.429/1992, sob os auspícios da Carta Magna/1988, não competindo ao STJ interpretar de forma tão ampla e tão gravosa a aplicação de tal sanção, mormente quando estamos no âmbito do direito sancionador.”

2º ponto – A interpretação que, infelizmente, se sagrou vencedora, era mais severa do que propriamente aquela aplicada pelas turmas criminais da Corte Superior:

“(…) Cumpre consignar que a interpretação seguida pela Segunda Turma, em sede de ação de improbidade administrativa, é mais severa que aquela aplicada pela Corte Especial do STJ e pelas suas Turmas criminais, nas hipóteses de crime contra a Administração Pública, no sentido de que o “cargo, função ou mandato a ser perdido pelo funcionário público como efeito secundário da condenação, previsto no art. 92, I, do CP, só pode ser aquele que o infrator ocupava à época da conduta típica” (APn 629/RO, rel. min. Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 28/6/2018).

Deveria ser uma conclusão lógica, não? Se nem ao menos as turmas criminais, em julgamento de possíveis práticas de crimes, aceitam interpretação extensiva do supracitado dispositivo penal, de que o cargo ou função a ser perdida pode ser aquele(a) ocupado(a) à época do trânsito em julgado da sentença condenatória, como poderiam fazê-lo em casos de atos de improbidade, revestidos de menor gravidade que condutas tipificadas penalmente?

Contudo, não foi o entendimento que prevaleceu. Nas referidas ações penais, o juízo a quo optou deliberadamente por buscar alento na jurisprudência cível-administrativa para fundamentar seu ímpeto, vez que, acaso buscasse subsídios de matéria penal chegaria a seguinte conclusão:

“(…) 15. No silêncio do legislador quanto à vinculação da prática criminosa ao cargo/função públicos ocupado pelo agente para fins de aplicação da medida, a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que “(…) a perda do cargo público, por violação de dever inerente a ele, necessita ser por crime cometido no exercício desse cargo, valendo-se o envolvido da função para a prática do delito” (HC 482.458/ SP, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, DJe de 5/11/2019).

Na mesma linha do precedente supracitado, nossa modesta opinião é a de que a interpretação extensiva (“in malam partem”), do artigo 92, inciso I, alínea “a”, do Código Penal, a fim de abarcar cargos diversos daquele supostamente utilizado para a prática delitiva, confronta diversos princípios que norteiam um processo penal, como o da proporcionalidade, da adequação, da razoabilidade e, principalmente, da correlação, como bem leciona Bitencourt:

“(…) A perda deve restringir-se somente àquele cargo, função ou atividade no exercício do qual praticou o abuso, porque a interdição pressupõe que a ação criminosa tenha sido realizada com abuso de poder ou violação de dever que lhe é inerente”.

Tanto se sustenta a independência entre as esferas, mas é só fechar os olhos por alguns segundos que a relativizam em prejuízo do acusado.

Acreditamos ser possível, ainda, o manejo de habeas corpus para combater tal ilegalidade flagrante, a fim de tutelar o devido processo legal, conforme preceito constitucional positivado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição [1]., como bem sustenta João Rafael de Oliveira [2].


[1] Bitencourt, Cezar Roberto. Código penal comentado (livro digital) – 10. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 505.

[2] Oliveira, João Rafael de. Habeas corpus como instrumento formador de precedente vinculante: proposta de aprimoramento à sua sistemática em Tribunais Superiores – 1. ed. – Florianópolis: Emais, 2023, p. 151- 157.